Não é necessário ser um observador perspicaz para notar que no Brasil –como em grande parte o mundo– há ma forte relação entre política e mídia num processo e retroalimentação do qual ambos saem modificados. Mas, além disso, o Brasil possui uma característica –que não pertence unicamente a ele– responsável por tornar esse relacionamento repleto de excentricidades. Claro, a característica da qual se fala é a corrupção, elemento há muito conhecido pelos brasileiros em todos os campos, mas com certo destaque para a política.
Contudo, alguns períodos da história política do Brasil recebem maior atenção quando se busca observar os momentos em que a relação, hoje em dia fundamental, dos mídias com a política são mais explícitas e corrosivas, tomando partido. São muitos os casos: As eleições presidenciais de 2006 e 2002; a participação nas diretas já!; as eleições de 1989; todo o governo Collor,; o governo FHC e, claro, o processo de impeachment de Collor, que será o objeto de estudo deste ensaio.
Em todo o caso Collor, há um forte poder elucidativo da interlocução entre mídia e política, expressando uma articulação bastante complicada e inovadora.
O processo de impeachment, entendido como todo o decorrer do episódio iniciado com as “denuncias de corrupção, as CPIs, mobilizações, afastamento provisório, julgamento pelo senado e punimento” (RUBIM, 1999), sem dúvida, foi um movimento de certa forma privilegiado de realização política, no que se refere a uma nova mudança na direção do poder de Estado Nacional ocorrida, pela primeira vez , dentro da legalidade e de acordo com o poder civil, recredenciando o poder legislativo e colocando boa parcela da população em movimento nas ruas, muitas destas em sua primeira participação/experiência política, enfim, “abre possibilidade real de uma significativa redefinição ético-política da gestão da coisa pública no país até então submersa a uma selvagem tradição de apropriação daquilo que é público por interesses privados, através de inúmeros expedientes, dentre eles a corrupção”(RUBIM, 1999). Dessa forma, o impeachment e todo seu processo funcionam como momento ou movimento de possível reformulação da prática política no Brasil.
Mas esse cenário de intensa manifestação de atividade política é antecedido por um outro, no qual Collor sente-se completamente à vontade com a mídia. Ambos colaborando reciprocamente. Sem dúvida, essa foi uma importante característica do governo Collor. Ele inaugurou uma modernidade midiática na política, na medida em que utilizava os novos meios tecnológicos a seu favor, como ferramenta de visibilidade para a construção de um imaginário social e conseqüente formatação da opinião pública.
Através de “pesquisas, temas, elementos e qualificações procedentes de cenários conjunturais” emerge a modernidade de Collor: visto como um jovem, como de fato o era, contrapondo-se ao velho, enfrentando a corrupção, um político não político, diferente dos que a população estava habituada a ver nas campanhas eleitorais. Tomado pelo estilo populista, Collor falava aos descamisados como se não houvesse intermediários entre eles: “minha gente”, “Casa da Dinha”, etc. As imagens que eram levadas ao espectador/leitor/eleitor eram a de um presidente esportista, intelectual, soldado, quase um super-herói montado em seu jet-ski, ou na moto Kawasaki, na ferrari, no Mirage, ultraleve, submarinos, carros de combates militares, etc. Dessa forma, o privado tornava-se público. E o que deveria ser público privado: “O que deveria ser vida privada, portanto íntima, de um dirigente político preenche de assalto os tempos de exposição pública inerentes ao exercício da vida política/pública, com o estímulo e conivência de Collor e da mídia” (RUBIM, 1999)
No que se refere aos assuntos públicos, a mídia tomada de amores por Collor e correspondida por este, fazia mutações em temas relevantes, mudando a essência de certos fatos a fim de não mostrar a dimensão pública destes. O que falar do caso em que o envolvimento de Rosane na corrupção da LBA foi mostrado ao público como se a crise na gestão fosse somente uma crise conjugal? A política torna-se privada e personificada na figura de um único homem: Collor de Melo.
Mas essa privatização da política contaminou todos os escalões do governo:
“No affair entre o ministro Bernardo Cabral e a ministra Zélia Cardoso de Melo confunde-se o público e o privado. No desenlace, a apolítica capitula ante os encantos da personalidade . Outra vez privatiza-se a política, agora com direito inclusive a registro novelístico”
(RUBIM,1999).
Porém, é necessário notar que a privatização da política não é linear. Ela comporta diversos eixos e movimentos de atuação, distintos e quase ocultos. Se o presidente Collor, num primeiro movimento, privatiza a política levando a público por intermédio dos midias o que deveria ser privado, em outras situações o que se buscou foi afastar dos olhos públicos assuntos que seriam de interesse popular. Dessa forma, privatizar a política passa ou deve ser entendido como a omissão de algo público
“porque atinente, antes de tudo, a uma lógica de realização e resolução sempre compartilhada, através de um recurso ao privado. Ou seja, reduz-se algo de pertencimento público à esfera do privado, camuflando-o. Isto é o que acontece no caso da santa aliança que une Rosane, Collor e LBA”.
(RUBIM, 1999).
Indo por essa lógica, num dado momento a privatização do público deixou de ser meramente simbólica e passou a realizar-se no mundo da corrupção, tendo como agentes políticos se apropriando de bens públicos, pertencentes à sociedade e instalados no Estado.
Volta-se, então, à velha herança cultural política brasileira de privatização em massa dos bens públicos, mas com a corrupção em larga escala como agravante. E foi justamente devido a esse processo que o governo Collor e todo o imaginário em volta dele e de sua presidência.
A privatização, no governo Collor, se radicalizou. Além disso, parecia ser regra geral corromper. Porém, a democratização da corrupção não durou muito. A voracidade do presidente e de seus amigos fez com que a corrupção, há muito institucionalizada no país, caísse em monopólio de excessões. Por vezes, o esquema de privatização do patrimônio estatal reivindicado por Collor foi deixado em segundo plano devido ao embate em torno das zonas e dos ganhos. O que importava era como fazer para obter maior lucro ilicitamete. Dessa forma, governar tornava-se tarefa difícil, tendo como acréscimo a dificuldade proporcionada pela crise vivida pelo país. Enquanto isso Collor de Melo transitava jovem e atlético pelos jornais, revistas, TVs e rádios.
Essa radicalização da privatização, em diversas dimensões, acabou provocando um esgotamento das fontes. E o queridinho da imprensa brasileira foi aos poucos perdendo sua graça aos olhos da mídia. O erro de Collor foi justamente apoiar-se numa visibilidade adquirida apenas pela simpatia da mídia e não calcada numa gestão pública realmente eficiente, capaz de gerar resultados notórios positivamente. A mídia tem uma triste tradição de elencar favoritos e destituí-los vorazmente assim que não apresentem mais interesse para seus propósitos. Collor foi um destes.
Agora, sem enxergar no presidente uma atração digna de ocupar espaço em suas páginas ou telas, a mídia passa a procurar uma outra notícia, também capaz de conquistar o leitor/espectador, para o público.
São muitos os escândalos que levaram ao impeachment de Collor. Em 1990, surge um dos primeiros escândalos, envolvendo o ex-secretário dos transportes Marcelo Ribeiro por dispensa de licitação na contratação de empreiteiras para o programa SOS Rodovias, cujo orçamento foi por volta de 500 milhões de dólares. Já no mês seguinte, mais uma vez contratou sem licitação as agências de publicidade Giovanni e Setembro, ligadas à campanha de Collor. Em outubro, o presidente da Petrobrás, Luiz Octávio da Motta Veiga, pediu demissão e denunciou pressões de Paulo César Farias e de Marcos de Coimbra, secretário-geral da presidência, para aprovar empréstimo de 40 milhões à VASP, já privatizada e controlada por Canhedo. Em 24 de outubro do mesmo ano, ao flagrar pela primeira vez a atuação de PC Farias nos subterrâneos do governo Collor, a Isto É publicou uma reportagem de capa intitulada ‘Ele complica a vida no governo’. Os escândalos Continuavam a sucederem-se, sem perspectivas de cessar, ainda que sem uma repercussão incisiva na mídia anestesiada ou na sociedade aparentemente alheia ao processo.
A partir do segundo semestre de 1991 os escândalos se intensificaram e adentraram 1992 sem dar tréguas, mas com um diferencial: ganharam grande notoriedade e visibilidade na mídia, alguns chegando até a ganhar dimensões desproporcionais ao seu valor real para a sociedade, a citar: os usineiros de Collor (junho de 1991), a festa de Rosane (julho de 1991), LBA de Rosane e parentes (agosto de 1991), fardas de Tinoco (outubro de 1991), bicicletas de Alceni (novembro de 1991), suborno de Magri e esquema PP (março de 1991).
É certo que a corrupção sempre foi figurinha presente na sociedade brasileira e ainda mais freqüente na vida política do país. E a mídia sempre soube, quando lhe conveio, explorar essa característica. Mas, ainda assim, cabe uma pergunta: Por que tais escândalos adquiriram tamanha dimensão?
Ao mesmo tempo em que a já tradicional presença da corrupção na sociedade brasileira estimula a continuidade da corrupção, sua impunidade e formação de imaginários cínicos (“sabe com quem está falando?”, “jeitinho brasileiro”, etc.) em contrapartida, essa presença desperta o desejo de fim da impunidade, muitas vezes recobertas por ressentimento, a fim de se alcançar uma ética na política.
Essa ambivalência em torno da corrupção incide também, logicamente, no modo de perceber e ver o tema Estado. A faceta neoliberal do Estado brasileiro, marcadamente corrupta, influencia enormemente para que se tenha a visão existente hoje. Essa é uma forte razão capaz de explicar o imaginário popular de que o Estado é um seleiro de corruptos. Ou ainda melhor, de que somente o Estado é ineficaz, enquanto que as empresas privadas não o são. E a mídia também compartilha desse imaginário. Tenha ela quaisquer opções políticas, o Estado acaba sempre sendo o grande vilão e culpado por todos os males da sociedade.
“Pode-se supor, de imediato, que talvez tenha existido um aumento efetivo da corrupção no país ou que o amadorismo e/ou a voracidade permitissem sua visibilidade maior. Certamente o embate entre as tentativas de ‘democratização’ e de ‘monopolização’ da corrupção ocasionaram conflitos que propiciaram a quebra do pacto de silêncio, que é condição de reprodução e envolve historicamente esta atividade”
(RUBIM,1999)
É nesse contexto que surgem inúmeras falas tanto de corruptores como de corrompidos. Os servidores públicos e trabalhadores médios, devido à oposição político-corporativa fizeram com que informações preciosas viessem à tona. Além disso, o projeto político de desmontagem do estado, por ter sido pouco delineado e tido conseqüências desagradáveis, também facilitou o processo de dilapidação iniciado via corrupção.
Sendo assim, a visão do Estado como um inimigo público devorador das riquezas do país acabou por apagar o delicado respeito à essa instituição. Além disso, o clima de liberdade, aliado à falta de um projeto plenamente hegemônico, à pluralidade política, e à presença de certos procedimentos democráticos possibilitaram que as denúncias surgissem e que a corrupção ganhasse existência social e visibilidade midiática, logo, pública.
O caso Collor contou com uma convergência entre corrupção e política, que ocasionaram uma politização dos episódios de corrupção. Portanto, a ética na política passou a ser defendida por grande parte da sociedade, impulsionada pelos mídias. Com isso, o ataque a Collor e à sua política neoliberal foi viabilizado e justificado. Por outro lado, as observações baseadas no neoliberalismo fez com que o foco saísse da tematização da política em si e se desviasse para o tema Estado. O que implica em dizer que a lógica privatizante em curso colocou o foco político no poder público e na sua adjetivação: a corrupção, com o objetivo de desqualificá-lo.
Como já foi repetidamente dito, desde muito a corrupção apresenta existência social no Brasil. E, mesmo na fase pré-CPI já era conhecida antiga dos brasileiros, principalmente porque trafegava com alguma desenvoltura na mídia, inclusive na televisão. Mas a figura do presidente, até então, não estava diretamente veiculada a ela nos noticiários.
A luta no parlamento pela CPI, de início, parecia não ser alcançável politicamente. Era essencial que outros setores, além do Partido dos Trabalhadores e poucos outros, mudassem de posição e passassem também a brigar pela CPI. Isto, porém, só foi possível a partir do momento em que os escândalos passaram a ser publicizados mais continuamente e as forças opositoras se expandiram e se multiplicaram. Entretanto, isso por si só não seria suficiente para levar o Inquérito a cabo. O acontecimento que de fato proporcionou a implantação da CPI foi as declarações bombásticas feitas por Pedro Collor à revista Veja em junho de 1992. A gravidade da declaração obrigou os partidários de Collor perceber que não haveria como escapar da CPI. O que restaria como solução era acompanhar o inquérito e tentar fazer com que este, assim como inúmeros outros anteriormente realizados no Brasil, terminasse sem que o investigado fosse indiciado.
É necessário notar, também, que mesmo com a implantação do Inquérito, a mída continuou com sua lógica de publicização do privado, a citar: no depoimento de Pedro Collor na CPI, grande parte da atenção dos meios midiáticos centrou-se não no andamento das falas, mas nas pernas de Maria Tereza, “nova musa que habitava a cena política” (RUBIM,1999).
Somente com as denúncias feitas pelo motorista Eriberto, publicadas pela revista Isto É, em junho de 1992, o jornalismo brasileiro tomou uma dinâmica de realmente cobrir os fatos e abandonar, pelo menos por um período a submissão de sua cobertura à lógica do capitalismo simplesmente. A partir desse momento, a notícia passou a ser o alvo primeiro das instituições jornalísticas, mas claro, sem abandonar definitivamente o vício anterior.
Com essa nova dinâmica, tais empresas passaram a travar uma disputa para ver quem era mais capaz de descobrir novos fatos e, consequentemente alavancar novos leitores. Até mesmo jornais que, até aquele momento, atacavam os defensores do impeachment, como O Estado de São Paulo, Folha e O Globo passaram a reivindicar a renúncia do presidente Collor de Melo. Os rádios e televisões também não ficaram de fora, mesmo porque entrar na questão significava sobreviver ou passar por um período de abstinência do público.
Revistas e jornais começam uma disputa investigativa, muitas vezes se antecipando à CPI.
“O que importa não é a ‘cobertura’, mas o trabalho investigativo que desenvolvem, os acontecimento políticos assim construídos e, principalmente a direção que, em verdade, dão aos trabalhos da CPI. A mídia, neste período, no essencial não faz a ‘cobertura’, mas produz a CPI, obviamente considerando o campo de forças vigentes na CPI e os esforços de alguns ativos parlamentares que buscavam, sem dubiedades, imprimir uma radicalidade ao trabalho dela. A própria constelação das forças e o ritmo do trabalho passaram a ser afetados pela dinâmica imposta pela mídia”
(RUBIM, 1999).
A mídia e sua CPI ‘paralela’
O citado depoimento de Eriberto foi, em grande parte, responsável por reorientar e dar uma dinâmica específica ao trabalho da CPI. A partir daí, a Comissão passa a desviar a atenção das provas testemunhais para as documentais de indiscutível contundência e poder, através do acompanhamento das possíveis trajetórias de cheques, que terminaram por envolver o presidente e descobrir toda uma rede de corrupção com PC Farias e Collor. Porém, apenas na etapa inicial das investigações o sigilo bancário foi quebrado. Dessa forma, a solução encontrada pela imprensa para não ficar alheia às descobertas feitas pela CPI foi realizar uma ‘CPI paralela’, com a própria mídia realizando as investigações e, muitas vezes se antecipando à Comissão Parlamentar de Inquérito.
A mídia também teve seu papel destacado devido a sua característica de dar visibilidade social. Dessa forma, a intensa publicização dos depoimentos da CPI serviu como uma espécie de incentivo para os depoentes, que viam nisso a possibilidade de, em pouco tempo, tornarem-se pessoas/políticos nacionalmente reconhecidos, logo, detentores de maior capital político, autonomia e independência. Além disso, essa exposição pôde significar, olhando por um outro ângulo, mas complementar, um importante invólucro de proteção e defesa frente às ameaças dirigidas àqueles cujos depoimentos contrariavam os interesses de poderosos. Ou, ainda, pôde significar a obrigatoriedade de certos políticos mais susceptíveis pela exposição de sua imagem se pautarem de acordo com as opiniões e com os interesses do público/eleitor, que na medida em que os observavam também os fiscalizavam (ou deveriam fiscalizar).
Tamanha atenção e acompanhamento dedicados pelos mídias à CPI, assim como pela população, fez com que o cenário político do Brasil, de junho a setembro de 1992, fosse reduzido somente à CPI. As eleições municipais, apesar de estarem sendo realizadas, raras vezes apareciam na mídia e sua importância foi reduzida e tornada subalterna.
“A mídia não só agendou o tema da corrupção/CPI no imaginário da população ou contribuiu de modo essencial para a construção de cenário político. O estoque de informações e opiniões, em um misto de perplexidades e expectativa, produziu uma potente indignação, ainda latente e represada, contra Collor e seus amigos. Mas as informações, opiniões e indignação não se traduziram automaticamente, para surpresa de muitos, nas esperadas e desejadas mobilizações populares. A população cada vez mais de tudo sabia, mas parecia permanecer cética, nunca apática”
(RUBIM,1999).
As mobilizações tentadas por alguns grupos, como o PT, CUT e os recém-criados Movimento pela Ética na Política e Movimento Democrático contra a Impunidade eram tímidas e mobilizavam somente militantes. E as poucas que abrangiam um maior contingente de pessoas não eram veiculadas nas mídias, a citar uma manifestação ocorrida em Brasília, em sete de julho de 1992, reunido 20 mil pessoas. “Parte significativa da mídia aderira à publicização da CPI com uma posição assaz ambígua frente ao governo. Tal ambigüidade os fazia temer as ruas e suas manifestações. Políticos como Quércia e Tasso Jereissati encontravam-se ainda em similar ponto de vista” (RUBIM, 1999).
Anos rebeldes (imitação?)
A primeira grande mobilização ocorreu no dia 11 de agosto, quando a CPI encerrou seus trabalhos. Agora, 70% das 500 cartas diárias recebidas pelo deputado Benito Gama pediam o impeachment de Collor de Melo. Coincidentemente (ou não) nessa mesma semana estavam sendo exibidos os últimos capítulos do seriado Anos Rebeldes, de Gilberto Braga, exibido pela Rede Globo de Televisão. O dia 11, dedicado aos estudantes, resultou sendo o dia em que os jovens e a população tiveram seu primeiro grande desabafo. E foi também o dia em que todo o potencial de mobilização latente no país foi detonado.
A mídia, simplista como muitas vezes o é, logo condenou o movimento de passeatas com rosto pintados e vestidos de preto realizado nas ruas do Brasil a ser uma reprodução do seriado na vida real.
Não resta dúvida de que Anos Rebeldes sensibilizou as pessoas para uma forma de manifestação diferente, experimentando algo novo só vivido por gerações anteriores. Mas seria muito afirmar que tais manifestações imitaram o seriado. Os estudantes e manifestantes como um todo perceberam as diferenças tanto de forma quanto de conteúdo entre os protestos vistos nos capítulos do Anos Rebeldes e os que estavam a promover. Havia, claro, identificação entre ambos, mas não identidade.
As caras pintadas, de certo, não significavam a imitação dos caras pintadas argentinos. As brasileiras tinham características de nacionalidade, de tribal, de índio, representando uma força ou vontade de ser selvagem. Selvagens alegres.
Resultado do uso de uma gravata verde e amarela por Collor durante um discurso inflamado dirigido aos motoristas de táxi, a cor preta veio a fazer parte do manifesto popular. Inúmeros significados pode-se tirar do uso das roupas pretas: “ausência de governo; luto pela vergonha e pelo (dês) governo do país; falta de cor que se atira contra o collorido do governo; o desejo de morte da corrupção e do governo de corruptos, etc.” (RUBIM, 1999). O preto deixou de ser simplesmente elegante e característico de algo sério, solene, respeitoso, lúgubre ou choroso. Nesse momento da história brasileira o sentido do preto foi reinventado. O Preto foi alegre, irônico, elegante.
Os editoriais: Campo de embate
Por entender que os editoriais foram um importante campo de embate político onde o uso de discursos antecipatórios foi essencial para a construção do impeachment de Collor de Melo, a partir daqui será feita uma discussão desse campo na mídia impressa, tendo como alvos de análises principais a revista Veja e a Isto É, devido ao fato de terem assumido uma postura clara e agressivamente a favor do indiciamento do presidente.
Os editoriais realizaram um conjunto de operações discursivas, de caráter argumentativo, fazendo com que o jornalismo produzisse uma série de envios e receitas ao espaço parlamentar e, de certa forma, instruindo-o sobre a temporalidade e regras do impeachment. A própria instância institucional jornalística toma formato discursivo – o editorial – estruturando-se a partir de várias vozes produtoras e articuladoras de sentido. Os editorias e suas estratégias discursivas tiveram um papel destacado no processo de contaminação do espaço parlamentar.
Todo um trabalho de elaboração de títulos, textos e imagens, hierarquização editorial, enfim, do discurso jornalístico articulando uma série de palavras foi feito para que as matérias adquirissem as expressividades desejadas e fossem capazes de fazer do campo jornalístico lugares estratégicos de constituição do discurso social. Mas não no sentido de dar voz ao povo ou de fazer o reclame das coisas, e sim de ser uma voz se impondo às coisas.
Dessa forma, torna-se interessante observar os espaços ditos editoriais nas duas citadas revistas (Veja e Isto É) no período entre maio e setembro de 1992, período referente à cobertura do impeachment. Tais revistas distinguem-se em ralação à nomeação dos ditos espaços editoriais. A Veja com sua seção ‘Carta ao Leitor’, caracterizada pelo estabelecimento de um contato entre o campo institucional – através do sujeito da enunciação – e o leitor, através do qual a publicação caracteriza os assuntos principais tratados na edição, emitindo também opiniões sobre os temas escolhidos. Já a Isto É tem a seção ‘Editorial’, no qual o discurso veiculado é construído à base de marcas opinativas, nas quais o sujeito da enunciação seleciona uma questão mais abrangente e emite valorações, fazendo predições, estabelecendo prescrições, proclamando posições e etc, ou seja, expressando o ponto de vista da instituição.
Mas é importante salientar que o fato de essas publicações dedicarem/reservarem um espaço para a opinião não implica em dizer que nos outros espaços destas mídias (originalmente espaços para a informação limpa) as opiniões não sejam encontradas claramente.
“Não estamos aqui defendendo uma distinção ingênua entre as dimensões informativa/opinativa, conforme sugerem alguns. Pelo contrário, estamos dizendo que no interior da economia discursiva do discurso jornalístico - ainda que o real seja apresentado segundo grades semânticas e classificadoras distintas – os níveis de subjetividade do sujeito atravessam vários e distintos patamares na matéria significante”
(NETO, 1994)
O editorial é um território estratégico, por diversas razões. As vozes que operam nesse espaço ficam em off, ou seja, não são facilmente reconhecidos pelos leitores, a não ser por certos traços lingüísticos característicos ou pelo nível do discurso.
Essas vozes falam em nome do coletivo, funcionam como porta-vozes de categorias e como peritos em análises de causas, praticamente como legisladores sociais, ou como professores que têm a função de ensinar para os leitores o que os fatos analisados representam, como avaliadores do mundo e de seus acontecimentos, enfim, como feitores de pontos de vista.
Dessa forma, o editorial é um lugar estratégico onde, utilizando como munição as palavras, trava-se uma guerra na qual, geralmente, o ponto de vista apoiado ou fundado pelo jornal vence.
E, no caso Collor, assim como vários outros, o editorial interveio no campo midiático de maneira tão ferrenha a ponto de a mídia se tornar um verdadeiro instituidor do real. Dessa forma, nos editoriais das revistas escolhidas para estudo (mas elas não são exceção), a mídia faz uma teorização exacerbada sobre sua missão informativa e sobre seu processo de intervenção no real; sobre a história dos processos de construção, obviamente que isso se refere ao agendamento de acontecimentos; e sobre as estratégias de interpelação da esfera da recepção.
Nesse editoriais é possível ver como a imprensa autoconstrói uma teoria a respeito de suas funções ao mesmo tempo em que apresenta a própria racionalidade do discurso jornalístico a respeito de como ele compreende e autodefine sua tarefa de referenciar o acontecimento.
Para exemplificar:
“A tragédia dos grandes problemas (t)...Durante todo o governo Collor, e com um ribombar fantástico nos últimos quatro meses, os brasileiros foram submetidos a uma vexaminosa onda de denúncias de corrupção – primeiro foi a imprensa cumprindo um serviço inestimável ao país, que mostrou as proporções inacreditáveis a que chegou o assalto ao Estado”.(Veja, 19/09/92)
Ou:
“Os fatos (...), as crises e os escândalos não estouram quando o país e a imprensa querem. Eles explodem quando têm de explodir e, frequentemente, nos momento mais impropriados. A imprensa não tem o condão de escolher a hora de publicar as notícias desagradáveis. O seu dever é relatar para os leitores o que está acontecendo, mesmo que seja ruim e muitos outros problemas atulhem a vida nacional. É por estar atenta às notícias da cena brasileira que a Veja vem surpreendendo os leitores a cada semana”. (Veja, 10/06/92)
No primeiro exemplo o que há de mais interessante para ser notado é que o fazer jornalístico saiu dos manuais de redação e foi parar nas páginas das próprias revistas. Dessa forma, o jornalismo teoriza sobre seu fazer, enfatizando a capacidade que o jornalismo (no caso a Veja) tem de dar visibilidade ao que sem sua existência permaneceria oculto. Prestando um pouco mais de atenção no enunciado, vê-se implicitamente que há a idéia presente de que a produção do sentido é entendido apenas como veiculação, como se não houvesse ali também uma modelização do real.
No segundo exemplo tenta-se passar a idéia de que o critério de entrada do acontecimento não constitui apenas o processo de agendamento, via classificação, hierarquização e tematização de assuntos. Se quer convencer que os fatos emergem automaticamente, como num passe de mágica e não pelas injunções e pressões do próprio processo histórico social, baseada na racionalidade midiática. Se quer convencer que a mídia funciona apenas como um lugar de observação que, surpreendido pela emergência dos fatos, resolve também surpreender os leitores, de modo involuntário.
“Nesse caso, a imprensa não tem o poder de definir a hora de publicar notícias desagradáveis, o que caracteriza sua subordinação, enquanto mero suporte, à lógica dos fatos. Porém, na medida em que Veja surpreende os leitores, sai desse lugar passivizado, instituindo uma temporalidade pela qual captura a percepção desavisada”.
(NETO, 1994)
Logo, se percebe que a mídia está sempre negando o que fazem na prática: Não produz fatos. Nem o tempo de produzi-los. Não os modela. Entretanto essas negações são contraditas no próprio texto da reportagem , quando a Veja diz que vem surpreendendo os leitores, sugerindo que isso se deve ao fato de ela relatar os fatos. Mas talvez esse surpreendimento esteja mais relacionado ao processo de referenciação.
Outra característica interessante é o fato de as revistas dedicarem grandes espaços a narrativas nas quais a história e modelização dos acontecimentos são expostos e inseridos nas edições de cada semana.
Os editoriais apóiam-se em marcadores típicos que se reportam ao contar histórias. Utilizam recursos da didatização para explicar algo que já está especificado em alguns enunciados.
“Veja se orgulha de ter estado no centro da crise. Foram dezessete capas sobre o assunto – coincidentemente, o mesmo número de capas dedicadas anteriormente a Fernando Collor (...)”. (Veja, 30/09/92)
Neste exemplo, o lugar da revista é evidenciado, auto-referenciando seu papel no centro da crise. A mídia não funcionou apenas como observadora periférica, mas, nas suas próprias palavras, era um ator que estava no centro do acontecimento, logo, num lugar estratégico, onde também o estão os jornalistas como produtores dos textos que vieram a ser publicados.
“Exemplo desse empenho é a entrevista publicada nesta edição com o ex-líder do governo na câmara, Renan Calheiros. Na tarde de quinta-feira passada, o chefe da sucursal (...) e Expedito Filho encontraram-se em Maceió com Renan. A entrevista se estendeu até altas horas da noite, foi repassada pelos três, checada, rubricada pelo ex-deputado e só então enviada à redação da revista em São Paulo”. (Veja, 24/06/92)
Nesse caso, o jornalista narra os detalhes de todas as operações com a finalidade de evidenciar todo o esforço realizado para se chegar na reportagem final. Mas o relato não se reduz em si. Refere-se também aos seus heróis e/ou às próprias instituições, o que se pode chamar de processo de auto-referenciação da própria mídia, consolidando seu papel estratégico.
A mídia também constrói a temporalidade do acontecimento, transformando o falar do acontecimento em ponto de vista:
“Isto É atrasou a saída da edição de n. 1.195, uma edição necessariamente histórica (...) Passagens do relatório já eram conhecidas, na sua forma definitiva (...) Mas Isto É entendeu que só deveria chegar às mãos dos seus leitores depois de conhecidas, na sua forma definitiva, as conclusões de um documento destinada a influenciar decisivamente o destino de todos. Assim, ela agora pode afirmar na sua capa que o presidente (...) está incriminado (...). (Isto é, 26/08/92)
Durante o processo da CPI a mídia não agiu apenas como mediadora entre os poderes, funcionando como um quarto poder. PorÉm, mais que isso, ela foi um dispositivo de produção do próprio poder de nomeação e, muitas vezes, no funcionamento da esfera política. A mídia não é somente mais um poder auxiliar. É ela quem fornece os temas sobre os quais os leitores devem pensar. É ela própria quem diz como os poderes devem estruturar procedimentos, a partir desse poder inerente à comunicação de massa. A mídia mobiliza os poderes, inclusive o Parlamento, adequando sua temporalidade e sua liturgia à sua economia discursiva.
“A CPI foi formada para responder a um caso que surgiu primeiro na imprensa, através de entrevista de Pedro Collor à Veja . A cada semana novos personagens são chamados a depor em CPI em função das reportagens de jornais e revistas”. (Veja, 24/06/92)
“Há uma semana, alguém disse que o rei estava nu, o motorista Eriberto. Os fatos estão provando, no seu desenrolar, que ele não mentiu. Todas as denúncias de Eriberto, divulgadas com exclusividade por Isto É e apresentadas na CPI, estão confirmadas”. (Isto É, 15/07/92)
Tudo isso leva a pensar que a mídia de fato foi uma espécie de parlamento de papel, realizando investigações especializadas. A relação entre o jornalismo e o parlamento não foi de complementaridade.
“As estratégias discursivas procuram não só olhar os fatos com seus protocolos de leitura, mas ao mesmo tempo, através de um processo paralelo, fazer funcionar um outro processo e, desse lugar, remeter para o Congresso um conjunto de ordenações a ser por ele observadas quanto ao desfecho do processo de presidente. É nesse nível que estamos dizendo que a mídia, para além do Congresso, constrói o impeachment, desenvolve seus trâmites, seus sentenciamentos, e instrui como o Poder Legislativo deve também fazer seu impeachment”.
(NETO, 1994)
Muitos dos textos editoriais destas revistas falavam para o leitor-alvo. Esse leitor, grosso modo, era o campo parlamentar, mas através de inúmeras construções figurativas: congressistas, Câmara Federal, Câmara dos deputados, Parlamento, parlamentares, políticos, etc. Sendo assim, as revistas aconselham, indicam quais ações esperam que seu interlocutor façam, advertem, colocam o campo parlamentar no interior do espaço de suspeições (como tendo contas a prestar com seu eleitor) e, ao mesmo tempo, apontam os efeitos nefastos dos eventuais atos dos parlamentares que não se compatibilizarem com o sistema de expectativas lançadas no interior do próprio enunciado. O sujeito leitor aqui toma uma outra dimensão que não a corriqueira. O leitor referenciado passa a ser basicamente os políticos e depoentes, devido ao fato de a mídia querer ampliar cumplicidades ou alertar adversários:
(t) “chegou a hora da verdade (...). Agora, a responsabilidade volta à Câmara Federal, aos 503 deputados que a compõem. Frente aos documentos levantados pela CPI, só cabe aos deputados uma alternativa: a de dar seguimento ao processo de impeachment, possibilitando o julgamento de Fernando Collor no Senado. Os parlamentares não decidirão se o presidente é culpado ou inocente. Pela maioria qualificada de dois terços, numa votação aberta, eles terão de dizer se o processo contra o presidente deve ser instaurado ou não no Senado. Votar contra a abertura do processo significa evitar que se faça justiça. Deixar de comparecer à sessão que discutirá o afastamento do presidente é mais que fugir à responsabilidade. O deputado que se ausentar estará enxovalhando os eleitores que o conduziram à Câmara, trairá o mandato que lhe foi conferido. O presidente deve ser julgado”. (Veja, 30/09/92)
(NETO, 1994)
O Veredicto do Campo Editorial
A edição da revista Veja de 02/09/92 foi às bancas sem sua característica sessão carta ao leitor. Em seu lugar havia sido introduzida uma matéria designada como editorial cujo título era: O presidente deve sair, ocupando toda a superfície da página onde estava inserida. Duas semanas depois, no dia em que o Parlamento se reuniria para apreciar a aprovação do impeachment, a Veja publica uma outra matéria, mas desta vez com uma imagem de Collor de costas para o leitor, com o enunciado: “Chegou a hora”. A carta do leitor tinha como título: “Chegou a hora da verdade”, juntamente com uma pequena foto na qual a imagem de Collor quase desaparecia dos limites da foto.Tais modificações na rotina da Veja, sem dúvida, teve um propósito imerso. Ela buscava transmitir com isso o tom de gravidade que colocava na construção que enunciava.
“(...)O relatório da CPI (...) atinge o presidente inapelavelmente. O presidente traiu a conf8iança que lhe foi depositada pelos eleitores. N]ao tem credibilidade para apontar caminhos, exigir sacrifícios, forjar acordos, convencer um povo inteiro da necessidade premente de reformas estruturais. (...) Fernando Collor de Melo deve sair da Presidência (...) Está nas mãos do presidente a alternativa de renunciar (...) ou de insistir em prejudicar o Brasil. A renúncia, por mais dolorosa que se afigure (...) é a melhor solução para a sociedade brasileira”. (VEJA, 02/09/92)
É visível o tom avaliativo do discurso, (des) qualificando o presidente, através de componentes pressuposicionais. Ao mesmo tempo, a revista mostra claramente seu ponto de vista: se ele não renuncia; insistirá em prejudicar o Brasil. É possível também que se evidencie a estratégia elaborada pela Veja: ela aponta os fatos, de maneira afirmativa; após, ela mostra que os fatos impõem a necessidade de renúncia; e, por último, ela diz que a renúncia não é apenas uma necessidade, mas é a melhor solução.
A imagem de Collor é subordinada ao trabalho de conotação jornalística e transformada em dispositivo de argumento. A mídia faz Collor sair de cena, na medida que o faz sair da imagem.
Considerações finais
A mídia venceu, como muitas outras vezes, a disputa. O presidente Fernando Collor de Melo que foi levado à presidência nos braços da mídia, como sendo um super-herói montado num jet-ski saiu de lá também pelos braços da mídia. Amor e ódio. Cada um a seu tempo.
Os brasileiros puderam acompanhar via tv e rádio, ao vivo, a deposição legal do presidente Fernando Collor de Mello, em sessão extraordinária do Congresso Nacional. Encerrava-se de modo inusitado o primeiro governo civil e diretamente eleito após o Regime Militar, ao mesmo tempo em que se abria uma nova era para a política brasileira, da qual ainda hoje mal podemos visualizar e caracterizar os traços principais.
Mas o fato é que presidente entra e presidente sai a cada quatro anos e a história se repete sempre. A mídia é inconstante e muda de amores no mesmo ritmo que muda de ambições.
Cabe ainda uma questão: seria possível pensar o impeachment de Collor sem a presença voraz da mídia?
Parece difícil conseguir imaginar tal processo fora dos holofotes da mídia. Mesmo porque, talvez o próprio impeachment nem ocorresse se não tivesse sido conduzido e preparado pelos meios midiáticos.
RUBIM, Antônio Albino Rubim Canelas. Mídia e Política no Brasil. João Pessoa: Editora Universitária, 1999.
CORREIA, João Carlos (Org.). Comunicação e Política. Estudos da Comunicação da Universidade da Beira Interior. Covilhã: Serviços Gráficos da Universidade da Beira Interior, 2005.
RUBIM, Antônio Albino Rubim Canelas. Comunicação e Política. São Paulo: Hacker editores, 2000.
NETO, Antônio Fausto. As vozes do impeachment. In: Mídia, Eleições e Democracia. São Paulo: SCRITTA, 1994.
---------.29 de setembro de 1992: o impeachment de Collor.Capturado em 20/10/2007. On-line. Disponível na internet: http://www.cpdoc.fgv.br/nav_fatos_imagens/htm/fatos/Impeachment.asp
----------Fernando Collor de Melo 1990-1992. Capturado em 18/10/2007. On-line. Disponível na internet: http://elogica.br.inter.net/crdubeux/hmello.html
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